Os desafios de ser MULHER e AGENTE PENITENCIÁRIA
Por TAMARA ARAÚJO
Dezesseis horas de um domingo, eu ali de cócoras intercalando os soluços do choro e a risada nervosa. O varal no chão e a roupa toda enlameada. Depois de um dia inteiro pra por tudo em ordem, meu varal não deu conta, rompeu. O serviço, justo o que menos gosto de fazer, todo perdido.
Há cinco anos casada, eu então com 23 anos, pela primeira vez me perguntava se minha vida se resumiria àquilo. Findo o ensino médio há mais de cinco anos, nem cogitava mais a possibilidade de voltar a estudar. Em uma cidade de 8 mil habitantes no interior do Rio Grande do Norte, casar e ter um trabalho no maior comercio local (um supermercado) era considerado o auge do sucesso de uma mulher.
Dias depois, numa conversa sobre insatisfação no trabalho, uma amiga mencionou sobre o concurso para Agente Penitenciário.
De cara achei um descabimento. Eu nem sabia o que era um “Agente Penitenciário”. Fui pesquisar, fiquei encantada por as histórias de pessoas que mudaram suas vidas ao conseguirem entrar em um cargo público. Sobre a função, não existia muitas informações. E as que tinham falavam de morte, reféns, rebelião. Adivinhem a qual fato eu dei importância?
Sou de veneta. Fiz a inscrição. Baixei todo material da internet, sem saber se era atualizado, e imprimi umas 500 folhas. Em casa, não foi dada importância à nova “invenção”, não era muito provável que isso fosse pra frente. Cinco mil inscritas. Fiquei na 234ª posição. Quatro anos depois (pois é, demorou!) e mais quatro fases. Testes Físicos, Psicoteste, Investigação social e Curso de Formação. Fui nomeada.
Em 2013 saiu a convocação para o curso de formação. A família, tão carente de informação quanto eu, não colocava muita fé. Pedi demissão do trabalho e fui pra capital. Cheguei lá com uma blusinha de oncinha rosa. Exatamente da cor que minhas bochechas ficavam no decorrer das aulas quando alguém me perguntava o que estava fazendo ali. Nem eu mesma sabia.
Um mundo novo, cheio de leis, golpes de defesa pessoal, sprays de pimenta foi aberto a mim. E toda uma lição sobre o que são as cadeias.
Os problemas são estruturais. Dos Prédios? Também. Mas, principalmente da sociedade.
Doenças infectocontagiosas, doenças mentais. Analfabetismo, falta de ética. Lentidão do judiciário, inversão de valores da sociedade, machismo, crescimento do crime organizado. A maldade do ser humano. Se cada um desses problemas fossem atacados na fonte, nossas cadeias seriam menos habitadas. Mas não são. Todos esses fatores são amontoados atrás de grades.
E nós lá, no meio de tudo isso, de roupa preta e armados de muito jogo de cintura.
Ao agente penitenciário é dada missão de resguardar-lhes a integridade física e a obediência das leis. Além de todas as demais rotinas de conferência, alimentação, medicação, visitas sociais.
A capacidade de dialogar é a maior arma do agente penitenciário. Um bom agente tem que saber falar. Seja com um familiar, com um preso, com um advogado, com um juiz, com um médico. Cada público desse tem uma demanda pro agente. A logística de uma cadeia é muito complexa. Impossível traduzir em um único texto. Uma ação básica, alimentação por exemplo, requer um rito próprio e ainda varia de unidade para unidade.
Em um determinado momento fui designada para trabalhar numa unidade feminina.
Sabe o presídio da série “The Orange is new Black”? pois é! Não tem nada a ver com aquilo.
As internas, como denominamos, gostam de contar suas histórias. Umas entram no crime por amor, outras estavam no lugar errado na hora errada, outras fizeram justiça com as próprias mãos. Tem presa que mandou matar o marido e contou, sorrindo, como preparou o café da manhã no dia que antecedeu o fato. Teve outra que contou como matou a amante do marido dela, com três tiros, na porta de casa. Pow, Pow, Pow. Ela repetia triunfante. Tem estelionatária, assaltante, traficante. Tem interna que foi presa porque não pagou pensão alimentícia, e tem também gente que não fez nada. Não é incomum que as famílias não as procure. E a solidão passa a piorar o que já é ruim. Tem sim uma energia pesada, tem também muita injustiça.
A vaidade, com ajuda da criatividade, dribla a escassez.
São trancinhas, penteados com retalhos, shorts que viram lenços, pasta de dente que vira máscara facial. Os relacionamentos amorosos entre elas, também são mais comuns que nas unidades masculinas. O que, por muitas vezes, geram outros problemas como brigas por ciúmes. Numa cela com várias pessoas – muitas delas sem qualquer limitação moral, ética ou religiosa – até uma piscada de olho pode gerar um problema gigantesco.
A gravidez é outro ponto marcante. Muitas chegam à unidade sem sequer ter feito uma consulta de pré natal. Os exames são providenciados e não é incomum os bebês virem ao mundo já custodiados por nós. Essa é sempre uma experiência que me afeta. A isso não acostumo. Fora a tensão que é a hora do parto, cadeia-maternidade-cadeia entre uma contração e outra.
De início me perguntavam como meu ex-marido me deixava ser agente penitenciário. Nunca soube responder porque nunca achei que fosse competência dele decidir isso.
Mas não nego que ser é uma profissão que lida diretamente com o machismo. Dentro de casa ou dentro da cadeia.
Certa vez, eu, na posição de chefe de equipe, preparei-me pra receber a visita de inspeção de uma juíza. Um capitão da polícia veio antes, pra garantir a segurança. Eu, à frente da equipe, o cumprimentei. Ele apertou a minha mão e passou direto para o único homem – entre várias mulheres – e disse que queria falar com o responsável. Meu colega disse que ele podia falar comigo mesmo. Meio sem graça fui mostrar a unidade.
A sós, ele perguntou meu nome. Respondi: Tamara. Ele: posso te chamar de Tá?. Eu: não, meu nome é Tamara. Ele: posso te chamar de Mara? É que eu sou ruim com nomes. Eu: meu nome é Tamara, e você pode me chamar de Sra Agente.
Em outra ocasião, jogaram pedras no prédio. Fomos fazer uma ronda externa, eu e uma colega ficamos localizadas na lateral da unidade, passaram dois rapazes e ficaram soltando piadinhas. Eu, fardada, com uma espingarda na mão, quase maior que eu, e ainda assim o cara não teve receio de me importunar. É claro que ele teve que pedir desculpas, mas fiquei tão incrédula que não tive reação, e um colega teve que intervir.
O fato mais engraçado é quando me perguntam a profissão.
Quando digo “agente penitenciário”, tem gente que diz: Mas, você não parece uma. Como parece uma agente? Gosto de perguntar. Uma pessoa grossa, corrupta, que não sabe falar? Desarrumada? Minhas colegas são vaidosas, femininas, sabem conversar. A pessoa fica meio sem graça e tenta remendar. “Não é isso…é que você parece ser boa.” E quem disse que agente penitenciário precisa ser ruim? Combater o mal iminente da melhor forma possível, impedir ou adiar um conflito, por meio de atitudes sábias, ou deixar um conflito mais curto pela habilidade e força, não é ser ruim. É ser bom, que é também diferente de ser bonzinho.
Tem gente que diz que não seria agente penitenciário por dinheiro nenhum do mundo. Nunca sei se a pessoa quer dizer que não quer ou que não conseguiria. Sou feliz por estar conseguindo. Nesse ambiente aprendi a me posicionar, a dizer não, a me impor, consegui minha independência e conheci pessoas maravilhosas. Amigas e amigos que levo pra vida, que são exemplos de seres humanos. Pessoas inteligentes, inspiradoras, que cumprem, com muito pouco, com a missão que lhes foi dada.
Pretendo sair, ando lendo sobre pessoas que mudam suas vidas através dos estudos. E quero descobrir novos desafios. Mas sempre serei orgulhosa pela profissão que abriu o leque de possibilidades que tenho hoje.